É difícil escrever um texto sobre bloqueios enquanto eu mesma passo por isso. Estou tentando finalizar minha dissertação de mestrado e por muitos dias não consigo redigir uma só linha. Em 2021, enquanto escrevia meu romance, também enfrentei períodos nebulosos. Foram justamente essas duas experiências – e mais outras tantas – que me motivaram a dividir não apenas dicas para enfrentar o vazio da página, mas todo o desconforto que ele gera.
Antes de tudo, saiba que um período de bloqueio criativo não acontece sem um contexto. É fundamental que a gente compreenda que travar diante da escrita nem sempre é preguiça, falta de motivação ou vergonha na cara, muito menos – acredite – falta de habilidade.
Sustento que a escrita é uma prática, que deve ser fortalecida, como qualquer outra atividade. Se você passa semanas sem se exercitar, quando volta, seus músculos não estão naturalmente preparados. Acontece algo semelhante quando se escreve. É preciso recuperar o ritmo e, nessa transição, pode ser que você sinta uma “dorzinha” até se adaptar a uma nova rotina. Também escrevemos com o corpo.
Mas isso não explica tudo. Às vezes estamos no meio de uma produção incessante e, de repente, travamos. Pode ser um trecho específico no nosso romance, a conclusão de um conto que teima em não sair, ou até um artigo acadêmico que precisamos entregar às pressas. As pistas sobre o que está pegando podem surgir quando identificamos o ponto exato em que travamos ou o tema que abordamos. Quase nunca é simples, muitas vezes esses questionamentos tocam em feridas mais profundas do que imaginamos.
Durante o mestrado, participei de uma disciplina em que o professor selecionava bibliografias e abordagens que conflitavam muito com o que eu acreditava como pesquisadora. Mesmo que naquele espaço houvesse uma hierarquia, eu estava consciente de seguir outra linha de pensamento, baseando-me em outros trabalhos e teorias.
É lógico que escrever o trabalho final dessa disciplina foi muito mais complicado que os demais. A boa notícia é que depois de dias de bloqueio, consegui encontrar um propósito para escrever meu trabalho, me posicionando criticamente às teorias discutidas nas aulas e defendendo meu ponto de vista, mesmo insegura. Doeu, mas deu certo.
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Por que nos bloqueamos?
Esses dias passou pela minha timeline um post da @contente.vc com a seguinte frase: não existe bloqueio criativo. Parei para ler, até porque já estava escrevendo este texto e queria entender essa afirmação capciosa. A postagem trazia uma entrevista do autor norte-americano Seth Godin, em que ele pontuava que o que existe, na realidade, é o medo de entregar ideias ruins.
Confesso que fiquei uns bons minutos lendo essa frase e pensando em todos os bloqueios que já me atingiram em cheio. Em partes faz sentido, uma vez que a nossa autocobrança em entregar algo absolutamente perfeito pode ser tão dura, mas tão dura, que o resultado é que não conseguimos sair do lugar. Aquela velha história de que feito é melhor que perfeito.
Mas para mim ainda diz pouco. Não dá para atribuir ao perfeccionismo todos os problemas de produção intelectual. Especialmente com as questões sociais que nos atravessam: não se pode desconsiderar as exigências do modo de produção capitalista, que sobrecarregam física e mentalmente as mulheres – e ainda mais as mulheres pretas, pobres e mães.
Concordo com a escritora Lara Torres, quando ela diz que desde cedo as mulheres aprendem a “nutrir um medo agudo do ridículo e do fracasso, solidamente construído da infância até a vida adulta, que é capaz de fragmentar a autoestima e desmobilizar o mais genuíno desejo”.
É claro que essas questões não nos arrebatam da mesma forma, somos muitas, atravessadas por diferentes opressões e limitações, mas a autossabotagem é mesmo um substantivo feminino (embora não seja exclusiva das mulheres).
Portanto, mesmo que o medo de entregar uma ideia ruim seja um disparador, ele não está dissociado dos componentes gênero, raça e classe, aliados à desigualdade na distribuição de tarefas, renda e oportunidades, atrelados ainda à carga mental e às diferentes formas de exploração.
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Como está o seu desejo?
Quando há um bloqueio, especialmente um bloqueio recorrente, também penso no desejo. É bem difícil escrever sem falta. É ela que impulsiona qualquer projeto, especialmente na literatura. A falta nasce do desejo e sem ele tudo é um grande vazio. Sem essa motivação a gente não abre um novo arquivo, nem se dedica a um livro que escapará fatalmente de nosso controle. Questionar-se qual é o desejo por trás de sua escrita – e avaliar se talvez ele não está temporariamente abalado – pode ser um começo.
Reúno essas provocações para que a gente entenda, de uma vez por todas, que nossos bloqueios, assim como sintomas físicos, querem nos dizer algo. E entender o que nos impede de martelar nas páginas do Word ou preencher nossos cadernos é algo que deve sim ser investigado, até mesmo com ajuda profissional.
Essa seria a primeira “dica” que eu daria para quem enfrenta um bloqueio. Perguntar-se o que está contribuindo para esse entrave. Quando há um obstáculo no curso do rio, as águas podem encontrar formas de contorná-lo para seguir seu fluxo, mas não deixa de ser desgastante o desvio. Em se tratando de escrita, compreender essa barreira a fim de dissipá-la ou torná-la orgânica ao processo é uma saída mais inteligente.
Foi num desses momentos de investigação que eu me entendi como uma pessoa ansiosa. É impossível desprezar a ansiedade como um grande entrave à produção intelectual. Se escrevemos com o corpo, não apenas ele precisa estar forte e ativo, mas também nossa saúde mental.
As respostas para os bloqueios são individuais, assim como as devidas soluções, mas existem alguns caminhos que podem auxiliar a destravar sua escrita. Tudo que eu apresento aqui são pequenas estratégias que já me ajudaram em algum momento de tremor diante do cursor piscando insistentemente:
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1. Aposte na organização
Considero bem difícil escrever qualquer coisa sem um mínimo de organização. É fundamental entender de onde se parte e para onde se está indo, mesmo que isso se refira ao macro e não aos microcaminhos do texto em si. Em um grande trabalho como é a dissertação, além de pensar na estrutura dos capítulos, às vezes até desenho diagramas para entender como todo esse material de pesquisa pode ser conectado.
Acredito que qualquer texto demande esse tipo de planejamento, a fim de tornar o resultado mais parecido com o desenho de um bordado do que com um grande Lego, conectando peças para que apenas se sustentem minimamente. Em alguns momentos de bloqueio, entendi que faltava justamente organizar para onde minha escrita ia. Mesmo que a gente mude a rota no meio do caminho (o que é totalmente válido).
2. Ritualize sua escrita, se possível
Aprendi com a escritora Andréa del Fuego que a gente vive sob estado de escrita. Quando nos entregamos a um projeto, estamos abertos a todas as referências e sensações que nos inundam. Recolhemos a matéria literária enquanto… vivemos. Por isso, a gente não escreve só enquanto escreve.
No entanto, é preciso criar espaço para que a escrita, a escrita de fato, também aconteça. Muitos dos bloqueios aconteciam quando eu esperava a conjunção tempo + pretensa inspiração + silêncio em casa se formar magicamente. Como isso quase nunca acontecia simultaneamente, era mais fácil se deixar atropelar por um prazo e escrever em ritmo frenético.
Sei que para muitos(as) não há um quarto todo seu ou tempo de qualidade para produzir e aí se escreve quando dá. Mas o fato de ritualizar um momento de dedicação à escrita − mesmo que seja a partir de marcações simples, como desligar o celular, fazer uma meditação ou esperar os filhos dormirem − cria condições mais saudáveis de escrita.
3. Concentre-se em outros textos/trechos
Se uma porta da minha casa está emperrada, eu tento sair por outra para buscar a caixa de ferramentas. Pode ser que eu arrume a porta travada mais tarde, mas, enquanto isso, posso continuar fluindo pelos cômodos. É mais ou menos o que penso quando travo em um texto ou num determinado trecho.
No caso desse último, costumo fazer o que me ensinou minha amiga Karla: interrompo a produção, com alguns simbólicos espaços de Enter e me dedico a outra parte – do artigo, da matéria ou da minha história. Parece que ao tirar a atenção daquele ponto, algumas soluções antes impensadas aparecem e eu posso então voltar para aquelas linhas em branco. O importante, nesse caso, é se manter em movimento.
Mas não deixe de respeitar suas pausas e também não se esqueça de se afastar do texto. Há momentos em que ele precisa descansar, sem você.
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4. Movimente o corpo
Para quem está com prazo no cangote e bloqueios mil, parece impossível sugerir que você deixe a escrita de lado para se exercitar, mas, acredite, liberar endorfina também significa tempo de qualidade para a sua escrita. Não sei precisar quantos insights eu tive durante minhas caminhadas ou como um texto desaguou depois de alongar o corpo em aulas de Yoga.
5. Busque referências e inspirações fora da sua bolha
Com o tempo, a gente tende a se inspirar nos mesmos lugares ou no mesmo estilo – de imagens, de textos, de passeios e até nas mesmas pessoas. Em períodos de bloqueio, já experimentei alterar a rota e fazer programas impensáveis; investir em um novo hábito (é nessas horas que eu insisto em um novo podcast); ou até retomar antigos contatos. Arejar a cabeça de tudo que a gente está acostumado(a) pode ser uma boa saída.
6. Peça ajuda
Escrever é solitário, mas a escrita não precisa ser. Crie e fortaleça sua rede de escrita – pessoas com as quais você se sinta à vontade para ser vulnerável, para desabafar, escancarar suas dificuldades e discutir seus escritos. É preciso escrever no coletivo. O olhar desse outro é sempre menos contaminado (e até mais acolhedor que o nosso, para nosso próprio texto). Tenho entendido que é preciso existir em rede, pois é ela que nos abriga no balanço do sonho.
Por fim, gostaria de dizer: seu texto vale a pena! Pode parecer bobo, mas acreditar na sua voz e no que se escreve também é uma potência criadora. Não basta só acreditar, claro, é preciso esforço, mas sem insistir que sua escrita vale a pena fica muito mais difícil. Desejo fluidez nas suas palavras – e espero também te convidar logo logo para a minha defesa de mestrado 😊